GREP Disserta: VOCÊ TEM FOME DE QUE?

GREP Disserta: VOCÊ TEM FOME DE QUE?

Este é um espaço reservado para @s participantes do GREP - Grupo de Estudos em Psicanálise - debaterem quinzenalmente um tema levantado pelo grupo, algo que seja revelante e que enseje reflexão da comunidade acadêmica e da população geral sobre temas cotidianas e caros à psicanálise. A ideia desta coluna, portanto, é que @s própri@s estudantes se mobilizem a produzir uma reflexão pertinente e socialmente importante.

Publicado em 09 de novembro de 2017

Você já observou que muitas pessoas tem medo de sentir fome? Aprende-se precocemente que fazer dieta é quase obrigatório e que privar-se de comer faz parte do sucesso para perder peso. A historiadora Mary Del Priore afirma que vivemos em uma sociedade lipofóbica, que repugna a gordura e os corpos gordos. Bombardeados por centenas de dietas que prometem um corpo enxuto, nunca o pecado da gula foi considerado tão grave como hoje.

Um corpo que parece nunca satisfazer… está sempre devendo, dono de um ideal nunca alcançado, gera eternos desapontamentos.

Dieta low carb, dieta da lua, dieta do shake, dieta detox, dieta da sopa, dieta do tipo sanguíneo, dieta da USP, dieta do limão, dieta do abacaxi, dieta da água de berinjela, dieta da papinha de bebê, dieta do jejum, dieta da água, dieta proteica, dieta, dieta, dieta, dieta, dieta...

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“Querida Leitora,

Permita me apresentar. Meu nome, ou como sou chamada, pelos 'doutores' é Anorexia. Anorexia Nervosa é meu nome completo, mas você pode me chamar de Ana. Felizmente nós podemos nos tornar grandes parceiras. [...]

Eu espero muito de você. Você não tem permissão para comer muito. Eu vou começar devagar: Diminuindo a gordura, lendo tabelas de nutrição, cortando doces e frituras, etc. Talvez você perca alguns quilos, tire um pouco de gordura deste seu estomago gordo! Mas não irá demorar muito até eu te dizer que não está bom o suficiente. Eu vou te fazer diminuir calorias consumidas e vou aumentar a carga de seus exercícios. Eu vou te forçar até o limite! [...] Eu estarei começando a me colocar dentro de você. Logo, eu não vou estar te dizendo o que fazer com comida, mas o que fazer o tempo todo! [...] Quando as horas das refeições chegarem, eu vou te dizer o que fazer[...]

Quando você olhar no espelho, eu vou distorcer sua imagem, e te mostrar uma lutadora de sumô, mas na verdade existe apenas uma criança com fome.[...] Pensamentos de raiva, tristeza, desespero e solidão podem ser anulados, pois eu vou tirar eles de você, e encher sua cabeça com contas metabólicas de calorias. [...] Eu sou seu melhor apoio, e pretendo continuar assim.

Com sinceridade,

Ana”

 

 

 

O texto acima – exposto no blog Ana e Mia da internet – é um recorte da carta de apresentação da Anorexia, que se personifica em Ana, uma “voz” que dialoga com suas seguidoras apresentando uma proposta de vida baseada em um ideal de um corpo magro, subnutrido, e no papel da anorexia como única relação possível, descartando os demais vínculos sociais.

Os significantes Ana e Mia podem ser traduzidos como representantes da anorexia e bulimia, e comunidades pró-ana e pró-mia defendem essas morbidades como estilo de vida. E pela gravidade e agressividade dos sintomas, faz-se necessária uma maior compreensão sobre tal patologia e os fatores atuantes em seu desenvolvimento. Neste sentido, tem-se que a Psicanálise muito pode contribuir, uma vez que as manifestações do sofrimento psíquico enclausuram a mente num corpo-cárcere.

É comum, em nossa sociedade a restrição alimentar, “fazer dietas”, o medo de engordar, mas aqui se refere a acentuadas perturbações no comportamento alimentar, quando a alimentação não é sentida como um dos principais combustíveis para a vida, o que nutre o corpo passa a ser visto como a destruição do mesmo, quando o comer e o beber não estão a serviço do viver e quando o corpo, a comida em si e as calorias envolvidas no ato alimentar passam a ocupar demasiadamente o espaço mental, isso se refere à dinâmica específica em que se estrutura o quadro de um transtorno alimentar.

De acordo com Freud (1895, p. 247.) “A neurose nutricional paralela à melancolia é a anorexia. A famosa anorexia nervosa de moças jovens, segundo me parece (depois de cuidadosa observação) é uma melancolia em que a sexualidade não se desenvolveu”.

A psicanálise investiga esses novos velhos sintomas e os toma como mecanismos defensivos contra estados de altas angústias onde o sentimento de culpa gerado pelos sintomas alimentares vem acompanhado por uma onda penitencial, com a sensação de débito constante de uma dívida impossível de ser quitada. Sentimentos de culpa são frequentes: por ter comido muito ou por ter comido pouco ou não ter comido nada… ter vomitado, ter contrariado os pais, amigos, o mundo.

Como a psicanálise pode ajudar esses sujeitos, que muitas vezes não buscam suporte por si próprio? Que grande parte das vezes são levados a tratamento pelos familiares já em estado crítico, em subnutrição, não percebendo que precisam de ajuda? É possível uma clínica psicanalítica nos transtornos alimentares?

Alguns estudos não recomendam o tratamento psicanalítico para os transtornos alimentares, chegando mesmo a contra indicá-lo, sob argumento que seria pouco eficaz. Porém, tal argumento merece algumas considerações.

De acordo com Scazufka e Berlink (2004), essa recomendação deriva dos estudos de Hilde Bruch com pacientes anoréxicas, que apontam, como principal característica pouca autonomia e a queixa de que suas mães sempre se expressaram por elas. No enquadre analítico, as interpretações dos significados inconscientes de sua fala, feitas pelo analista, corroborariam, na transferência, o vínculo de dependência e repetiriam as suas vivências de invasão. Bruch recomenda, então, uma atitude mais ativa do analista, incentivando as pacientes a pensarem por si próprias.

            Sem eximir a formação clássica da psicanálise no manuseio dos recursos técnicos e metodológicos (transferência, atenção flutuante, análise da contratransferência, resistência etc.), esses quadros requerem certa adaptação da técnica e do enquadre.

Essas “adequações” dizem respeito à necessidade de conservar comunicação com os outros profissionais que acompanham o paciente e com sua família, uma vez que é recomendado que o  tratamento se dê em equipe multidisciplinar e o acompanhamento familiar é importante devido ao alto índice de abandono do tratamento nesses casos e a diminuição dos conflitos e angústias familiares, fator decisivo para a melhora e recuperação do paciente;  o uso do divã não é recomendado, sendo a posição face-a-face a mais recomendada, uma vez que precisam “ser vistos” pelo analista, e usá-lo em sua função de espelho pelo menos até que sua capacidade simbólica seja restaurada; disposição para o trabalho com jovens, uma vez que esses transtornos tem origem principalmente na fase da adolescência, que por si só demanda um trabalho diferenciado. Fiorini (1999) em seu trabalho com patologias narcisistas propõe um contrato terapêutico, o que chama de “intervenção vincular”, que compreenderia uma vasta gama de intervenções ativas do analista sobre o vínculo com o paciente, podendo assim desejar e manifestar que o paciente não morra de inanição; elaboração de contrato de peso com o paciente, entre outras condutas, dependendo da atuação de cada analista.

Enseja-se que a equipe que efetuar o tratamento dessas desordens sempre mantenha um sagaz apetite para o trabalho, reavivando essas mentes para além das calorias geladas de afeto, rumo à liberdade do seu desenvolvimento saudável e de sua vida criativa, contribuindo na tarefa de tornarem-se quem são, guiados nos versos de Píndaro (século V a.C.): torna-te aquilo que tu és!

 

Autores (em ordem alfabética)

(estudantes de psicologia): Karina de Araújo Ferreira; Karina de Oliveira Fialho; Nismaira Caetano de Paula.

Revisão Conceitual: Luciana Torquato (docente do Curso de Psicologia)

 

Referências Bibliográficas

 

BRUSSET, B. Conclusões terapêuticas sobre a bulimia. In: Urribarri R (org.) Anorexia e Bulimia. São Paulo: Escuta; 1999.

 

GASPAR, F. L. A violência do outro na anorexia: uma problemática de fronteiras. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 8, n. 4, p. 629-643, 2005.

                                 

FIORINI, H. Comentários ao artigo de Helen Deutsch. In: Urribarri R (org.) Anorexia e Bulimia. São Paulo: Escuta; 1999.

 

FREUD, S. (1895) Rascunho G. In FREUD, S. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. I.

 

SCAZUFCA, A. C; BERLINK. M.T. Sobre o tratamento psicoterapêutico da anorexia e da bulimia. In: Cardoso M R (org) Limites. São Paulo: Escuta, 2004, 89-106.

 

           

 


Fonte: https://academico.univicosa.com.br/uninoticias/noticias/grep-diertavoce-tem-fome-de-que