Os impactos e urgências surgidas com a disseminação do novo coronavírus fizeram com que o mundo parasse e estabelecesse medidas combativas e efetivas para reafirmar a necessidade da solidariedade
O papel exercido pela pandemia da COVID-19 sobre a política pode ser mensurada de várias maneiras. Um marco importante desse papel, no entanto, remonta ao final da primeira semana de março de 2020: o impacto sobre a negociação do preço do petróleo pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) e de sua aliada, a Rússia. Desde então, o derretimento da economia ao redor do mundo inscreveu de vez a pandemia nos veículos de informação globais, gerando uma crise econômica praticamente sem precedentes, como a instabilidade das bolsas de valores ao redor do mundo.
Este fato estabelece um ponto de debate importante: incialmente, a pandemia aparece não como um problema de saúde pública, mas como um problema econômico, donde deriva uma primeira inquietação fundamental.
Tal aspecto se torna importante quando visualizamos o caminho percorrido até aqui, desde a notificação do primeiro caso do novo coronavírus. No anseio por controlar uma economia revolta e instável, questões de saúde pública foram adiadas perigosamente. Não se trata de uma condenação, muito pelo contrário: é compreensível que um clima já pouco otimista em razão da instabilidade econômica anterior fosse potencializado pela emergência da pandemia. Logo, é de se esperar que um cenário imprevisível, de incertezas sobre quando e em que condições a pandemia chegará a seu fim, implique em fechamento do comércio, suspensão das atividades da indústria, em férias coletivas, etc.
No entanto, no cenário político contemporâneo em que pesa um descolamento cada vez mais evidente entre a gestão do Estado e as perspectivas sociais sobre seu papel, é preciso compreender que as perspectivas do empresário, do pequeno comerciante, do trabalhador em suas diversas modalidades, tende a se mostrar sempre como uma perspectiva parcial acerca dos problemas que aparecem na arena política. Essa parcialidade, num modelo social fragmentário como o nosso, se caracteriza exatamente pela individualização das perspectivas, se afastando radicalmente de uma necessária compreensão do todo que caracteriza a coletividade e solidariedade.
Devemos entender que as demandas individuais, legítimas enquanto implicam uma dinâmica de reconhecimento do estatuto dos indivíduos, deve ser sempre mediada face às demandas da coletividade que, por sua vez, só poderiam ser percebidas à luz do todo. Assim, se variados grupos sociais demandam auxílio do Estado para não falirem – construção civil, bancos, cultura, educação, etc. –, todas elas serão percebidas a partir da perspectiva do todo pelo mesmo Estado. Um olhar menor por parte da sociedade civil em suas variadas dimensões, um olhar de responsabilidade por parte do Estado, que precisa não apenas dar uma resposta a cada demanda em particular como também ser capaz de avaliá-las e compreender suas respectivas naturezas e reais prioridades.
É aqui que reaparece a relação entre os problemas econômicos e de saúde pública, visto que, se o Estado não for capaz de diagnosticar segundo essa perspectiva da coletividade o problema enfrentado, suas soluções serão incapazes de surtir mais que um efeito provisório. Ainda, se o problema econômico é derivado da pandemia, nenhum tipo de solução será capaz de salvaguardar a economia em se mantendo as condições pandêmicas.
De qualquer forma, esse ainda é um problema secundário face a outro maior: as ações do Estado, ao atacarem o problema econômico de maneira anterior ao problema de saúde pública, ao retardar o processo de enfrentamento metodológico, científico, é passivamente responsável pela proliferação do vírus. Isso porque, de acordo com a publicação, sua proliferação está relacionada não exatamente aos casos diagnosticados e devidamente isolados, mas especialmente aos assintomáticos, cuja taxa de transmissão atinge impressionantes 76% do total. Em outras palavras: se o isolamento não é estabelecido de maneira preventiva pelo Estado, a estratégia de quarentena para os casos diagnosticados se mostra insuficiente para o avanço da pandemia.
Isso nos permite, uma vez mais, retomar a relação entre as perspectivas da sociedade civil e do Estado. A sociedade civil, novamente, é possuidora de perspectivas parciais; o Estado deve possuir um conjunto abrangente de perspectivas, recursos inestimáveis para a condução da sociedade. Se, por um lado, cada indivíduo pode e deve se ocupar de garantir os meios para a preservação de sua própria saúde – considerando, obviamente, as condições do próprio modelo de Estado em que se encontram – a situação de pandemia reúne, evidente, condições excepcionais que ultrapassam em muito os vetores de sua decisão, implicando, portanto, uma intervenção do Estado a fim de preservar a saúde pública.
Assim, se cada um dispõe de sua própria vida, de seu corpo, não o pode fazer com relação à vida e ao corpo de outros; donde deriva exatamente a responsabilidade maior do Estado na regulação das relações da coletividade, justificando exatamente a necessidade de intervenção – que tem sido feita mediante decretos de natureza excepcional - que preserve as vida e saúde coletivas.