Afastando o risco de estigmatizar o portador de sofrimento mental

Afastando o risco de estigmatizar o portador de sofrimento mental
Publicado em 14 de abril de 2011

Fabiana Cristina Teixeira


* Fabiana Cristina Teixeira

O episódio de Realengo, no Rio de Janeiro, foi, indiscutivelmente, fonte de um imenso mal-estar. Lacan nomearia como “da ordem do horror”, pois, quando se trata de algo tão devastador, realmente temos escassez de recursos psíquicos para lidar com tais representações. No entanto, este incômodo parece ganhar uma proporção sádica à medida que as pessoas insistem em rever, repetir, falar, especular, numa possível tentativa de elaboração ou numa defesa que busca assegurar que o insano está sempre distante, como se não estivéssemos sujeitos a nenhuma alteração psíquica e sempre assegurados a um ideal de normalidade.

Em Psicopatologia, entendemos um quadro como psicopatológico pela ruptura no contato com a realidade. Acho pertinente esclarecer que tal cisão com a realidade não se dá de modo corriqueiro, proposital, nem consciente. Trata-se de um processo psíquico complexo, que envolve sua dinâmica pulsional e que passa pela constituição do sujeito e de sua personalidade. Não podemos pretender atribuir uma ideia de causalidade entre o sintoma e a ação, ou seja, não se trata de concluir que, por haver ideias delirantes, alucinações ou qualquer outra alteração psíquica, ocorrerá um crime ou qualquer outra ação prejudicial ao próprio indivíduo ou aos demais. Se permanecermos neste equívoco, estaremos alimentando expectativas ruins para o portador de sofrimento mental, que, na imensa maioria dos casos, jamais praticará nada parecido.

Para convivência em sociedade, precisamos desenvolver recursos internos que nos possibilitem conter nossas pulsões destrutivas e transformá-las em recursos saudáveis para nós e para os outros. Não nascemos com condições para tal, mas as desenvolvemos ao longo de nossa constituição como sujeitos, enquanto nossa personalidade vai se estruturando na infância e na adolescência. Como nascemos psiquicamente desamparados, precisamos de outros que nos possibilitem tal constituição. Disso também dependerão nossos recursos psíquicos para lidar com as adversidades e exigências culturais. Assim, temos um histórico de vida.

No recente episódio de Realengo, por acaso, antes de matar tanta gente, não foi o que Welington buscou? De que histórico ele estava falando? Era de fato apenas um histórico escolar ou podemos interpretar simbolicamente esse “histórico”? Quais foram de fato, as marcas psíquicas que Welington trazia impressas em seu psiquismo? Mesmo com as marcas que deixou não podemos responder tal questão sem as considerações do sujeito, presentificado.

Frente a uma passagem ao ato como esta, podemos entender que tal contenção pulsional necessária não ocorreu; houve, sim, uma espécie de transbordamento de pulsões destrutivas alimentadas ao longo da vida, tanto em relação aos outros quanto em relação a ele mesmo. Inclusive podemos apontar vários fatores que talvez tenham desencadeado a tragédia. No entanto, os fatores desencadeantes despertam o que de alguma forma já existia, mesmo que de forma latente e imperceptível, num primeiro olhar. Não se trata de um processo de imitação, de “moda” ou qualquer outra coisa semelhante, pois não imitamos o que psiquicamente não faz sentido para nós. Mesmo com muitas semelhanças, em cada caso o evento tem um sentido particular, ainda que seja um sentido mortífero.

A constatação da vulnerabilidade a que estamos sujeitos faz com que muitas pessoas se movimentem numa busca sedenta que possa justificar, explicar, prever e exterminar determinados comportamentos. Podemos construir muitas hipóteses diagnósticas para o caso, pensar em estratégias profiláticas, mas não há meios de nos protegermos da sensação de desamparo a que tal fato nos remete, pois, mesmo com todo o nosso conhecimento, não conseguimos responder a questões tão complexas, numa falsa ilusão de controle. Precisaremos nos haver sempre com algo que escapa ao controle consciente. Freud já nos apontou isso há um bom tempo.

* Professora de Psicopatologia e Psicologia do Desenvolvimento do Curso de Psicologia da Faculdade de Ciências Biológicas e da Saúde, mantida pela Univiçosa


Fonte: https://academico.univicosa.com.br/uninoticias/acervo/1e67aea7-dd0a-4df6-9733-f435cf5c2ad3